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sábado, 23 de junho de 2012

Alma de corno


Nelson Rodrigues, o Nietzche brasileiro, escreveu que certos homens nascem para ser traídos. Pesaria sobre esses infelizes genéticos uma pátina de fatalidade que os faria caminhar – feito um Édipo, feito um Hamlet, feito um idiota – em direção à única tragédia percebida como tal por estas bandas, o chifre.
Nelson era um homem dos anos 30, mas, neste assunto, acho que o imaginário brasileiro não mudou substancialmente. Para homens ou para mulheres. A traição ainda é vista como uma tragédia pessoal insuperável. A fraqueza masculina é a sua principal explicação, acompanhada, naturalmente, pelo pérfido caráter feminino. A violência, ou pelo menos a mais terrível vergonha, é percebida como a única resposta imaginável.
Tudo isso no plano moral, quase filosófico. Na vida real, as pessoas traem e são traídas cotidianamente, sem que isso cause enorme confusão. Os envolvidos sofrem as consequências íntimas e sociais dos seus atos, que às vezes são graves, mas, na maior parte das vezes, o drama privado não acaba em acerto de conta público. Embora às vezes termine, tragicamente.
Mas o plano imaginário é terrivelmente importante. Nós vivemos tanto no mundo dos atos quanto no mundo das ideias. E as nossas ideias nesse terreno são antigas. Agimos de forma moderna, mas sentimos de forma antiquada. O velho fantasma da traição ainda nos põe obcecados. Homens e mulheres. Andamos por aí com um sorriso nos lábios, mas em estado de vigília permanente, interiormente atormentados. Morremos de medo. Parece que não existe nada mais importante no mundo do que a nossa maldita honra.
No fundo, temos alma de corno. Não por estarmos fadados a ser traídos, como pensava Nelson, mas por vivermos apavorados com essa ideia.
O medo da traição domina a nossa vida social. Fazemos piadas incessantes sobre o assunto para exorcizar o terror de que nos aconteça. Temos na ponta da língua frases lapidares sobre o tema. Comentamos intensamente a vida dos outros por perceber, melhor que os envolvidos, o inevitável chifre que vem vindo. Julgamos quem está em volta drasticamente, cegamente, com base na percepção de risco que ele ou ela nos impõe. Começamos e, sobretudo, terminamos relacionamentos por medo de ser enganados. O chifre assombra a nossa vida com a fatalidade do inevitável. Somos viralatas medrosos e assustados quando se trata desse assunto. Homens e mulheres.
Parte da nossa paranóia tem origem óbvia: a mania de tratar coisas íntimas como assuntos públicos. Discutimos com tanta insistência a vida dos outros que antecipamos como os nossos reveses serão julgados, da mesma maneira frívola e impiedosa. À dor íntima da traição ou do abandono, que é imensa, juntamos a vergonha de ser expostos ao ridículo. Imaginamos as piadas, os comentários, o sarcasmo. Isso enlouquece. Se déssemos menos importância ao que os outros pensam e falam, se fôssemos mais privados na nossa dor, o sofrimento seria menor. E a paranóia também.
O outro componente do nosso medo é interior. Enxergamos na traição um julgamento a nosso respeito. Um homem de verdade não seria trocado; uma mulher atraente não seria deixada para trás. É puro Nelson Rodrigues. Quando somos enganados, sentimos que a culpa é nossa. Ao acusar o outro, tentamos desviar a atenção sobre a nossa suposta responsabilidade.
Somos incapazes de perceber que o desejo vai como veio. Que a atração entre duas pessoas não implica num juízo sobre qualquer outra. Que as escolhas eróticas e afetivas não estão baseadas em quadros comparativos de virtude, virilidade ou feminilidade. Ao sermos enganados, esquecemos que o desejo não tem regras.
Talvez seja hora de deixar essa visão antiga para trás. Viver a felicidade sem medo, aproveitar a curtíssima vida sem sobressaltos. O amor entre as pessoas existe, os compromissos que elas assumem são reais, o respeito é parte da vida. Se as coisas mudarem, teremos de lidar com elas. Quando acontecer. Com dor, com tristeza, com raiva. Com dignidade também. Privadamente. O mundo de Nelson Rodrigues, dos homens temerosos e das mulheres impotentes, todos discutindo a vida de todos os demais no portão, vai se dissolvendo lentamente ao nosso redor. Podemos inventar para nós mesmos um outro mundo, melhor.

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